A geração que cresceu ouvindo “Diário de um Detento”

“São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã”

Se não vier um sininho sinistro na sua cabeça e você não souber completar a próxima frase volte pelo menos uns 20 anos no rap nacional.

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Posso afirmar, sem sombra de dúvidas, que essa é uma das letras mais geniais da música brasileira. Além de ser uma denúncia de um dos episódios mais sangrentos do sistema carcerário, que mesmo após 25 anos os responsáveis seguem impune, ela expõe em alto e bom som (papel fundamental do rap) a realidade. Geralmente quando alguém me pede alguma sugestão de rap nacional da velha escola eu sempre indico Diário de um Detento.

Todo dia 2 de outubro, desde que descobri essa música, é um dia de reflexão. Depois que comecei a ler mais sobre o massacre e ouvir outras histórias, a cada ano meu acervo de informações sobre o Carandiru fica maior. Gosto de pensar que cada jornalista tem um “caso especial” com algum evento na história brasileira. O meu foi o 2 de outubro de 1992. Por escrever sobre rap e estar imersa nessa cultura de diferentes formas a clássica música dos Racionais Mc’s cumprem o papel de dar voz a todos os excluídos e presidiários estão inseridos nessa conta.

Foram 111 mortos (pelas contas “oficiais”), esse número ecoa na minha cabeça toda vez que eu leio qualquer matéria ou notícia sobre o assunto. Me incomoda tanto quanto aquele beat constante da música. Me incomoda da mesma forma de saber que um som de 8 minutos não tem refrão e é uma narrativa de um cotidiano. Desde que comecei a ouvir a música a cada ano eu entendo ou descubro o significado de uma linha diferente.

O que incomoda é saber que diante dessa barbárie as chacinas não diminuíram e a impunidade ainda se mantém. Que o pensamento das pessoas ainda continua o mesmo “bandido bom é bandido morto”. Podemos dizer que o que teve início no Pavilhão 9 ainda ecoa. Não tivemos nenhuma lei ou mudança no sistema carcerário que tenha mudado significativamente, pelo contrário, estamos nadando contra a maré de países desenvolvidos para poder diminuir a maioridade penal.

O que Brown cantou diretamente do diário de Jocenir virou um mártir. Não sei se o que me levou para o jornalismo foi a vontade de mudar o mundo ou a vontade de denunciar tudo aquilo que eu cresci vendo. Não sou mc, mas hoje uso minhas palavras para fazer essa denúncia. Cresci ouvindo o álbum Sobrevivendo no Inferno e sei da importância que ele teve para minha formação como pessoa. Obrigada Racionais Mc’s! 

O Rap em Movimento reuniu o depoimentos que falam de como se sentiram ao ouvir esse som pela primeira vez e o que sentem ainda. São Jornalistas, Mc’s… pessoas comuns:

A primeira vez que ouvi Diário de um Detento eu tinha uns 8 a 9 anos. Com 10 pra 11 eu sabia a letra de trás pra frente. Mas eu não entendia o que ela significava.Quando eu tinha 11, quase 12 anos, fui ao cinema assistir ao lançamento do filme “Carandiru” e então tive aquele momento “mind-blow” em que tudo fazia sentido.A poesia contida nessa música começou a me incomodar. E toda vez que eu ouvia a música minha mente ficava cheia de imagens do filme. “Também em 2002 aconteceu na TV uma onda de “reportagens especiais” sobre o massacre, por conta dos 10 anos do mesmo. E as imagens se somavam na minha cabeça, me deixando cada vez mais perturbado ao ouvir o som.

Confesso que por alguns anos eu preferia nem ouvir a música… Quando eu tinha uns 15 eu peguei emprestado o livro “Estação Carandiru”, do Drauzio Varella, e nele me atentei mais aos relatos do cotidiano da cadeia e histórias dos personagens do que no fato do massacre em si. Isso me trouxe outra ótica da música. Passei a prestar mais atenção no que vinha entre Aqui estou mais um dia…. e “dois a dois considerados passaram a discutir”… e menos atenção ao final… E redescobri a poesia novamente de outra forma. Voltei a gostar da música. Parou de me incomodar tanto.

Foi uma música que, junto com outras do grupo Detentos do Rap, escancarou a realidade do sistema carcerário, que ainda é precária pra caralho, mas antes era tudo por baixo dos panos. Poderia ficar horas falando sobre as reflexões que essa poesia me trouxe…Mas quem vai acreditar no meu depoimento?” João Augusto a.k.a Mamutti 011, Mc

“O banco de trás de um chevette tubarão. Qualquer data entre fim de 1999 e primeira metade de 2000. Foi assim a primeira vez que ouvi Racionais e, coincidência ou não, Diário de um Detento. O namorado da minha tia sempre escolhia com muita calma os CDs que colocava perto da gente, coisa leve, mas não sei como nesse dia acabou caindo pro rap. Foi impressionante. Aquilo ficou girando na minha cabeça por muito tempo e eu passei dias com a música entalada na garganta, ou pelo menos os recortes dela que eu lembrava. Segui escutando, um pouco mais velho e com a feliz chegada da internet banda larga em 05/06, mas a verdadeira mudança de perspectiva veio pra mim no fim de 2012, quando mudei pra Zona Norte.

Passar pela sombra do Carandiru todos os dias, olhar o espaço enorme que costumava abrigar a casa de detenção no meio da cidade diariamente é sufocante. Se o papel da arte é transmitir vivência e sensações, é impossível pensar num exemplo que fez isso tão bem quanto Diário de um Detento. O desamparo, o medo, o fatídico fim, cada rima expõe o cotidiano e a loucura que os moradores do Carandiru viveram. Dá pra escutar uma, duas, dez, cem ou mil vezes. O impacto permanece. A dor é viva. A gente não esquece. Não perdoa.” Pedro Catarino, Jornalista

Confira as outras matérias que fizemos em especial a esse álbum icônico:

20 anos de “Sobrevivendo no Inferno”

Rapaz Comum 

 

Rapaz Comum

Texto inspirado na música Rapaz Comum do grupo Racionais Mc’s, em comemoração aos 20 anos do aclamado disco “Sobrevivendo no Inferno“.

Edivaldo morava em um dos extremos da cidade de São Paulo, tinha 22 anos, torcedor fanático do Santos, morava com sua namorada e a filha de 3 anos na casa da sogra, era estoquista de um hipermercado 24h.

Pegava trem todo dia antes de amanhecer para chegar no trabalho às 6h, gostava de ficar ouvindo música no caminho enquanto lia as notícias de futebol no celular. E naquela manhã ele estava ansioso demais: quinto dia útil e final de Copa do Brasil, o Santos ia jogar. Naquele mês de outubro ia cair um bônus das horas extras que ele fez em setembro, uns reais a mais no salário, esmola de patrão, cuzão milionário, mas aquilo não importava, Edivaldo achou melhor pensar que naquele dia poderia se dar ao luxo de tomar umas brejas vendo o alvinegro praiano. Enquanto escutava Me Faça Forte, leu que seu time não tinha nenhum desfalque para a decisão.

Chegou cedo no trabalho como sempre e fez tudo que lhe foi pedido sem reclamar, lembrou que tinha que levar leite e umas balas que prometeu para a filha, fez um vale. Comeu dois mistos quente e tomou café com leite na padaria do lado do trabalho na hora do seu intervalo, leu mais umas duas ou três notícias de futebol, deu risada de memes, mandou mensagem para a namorada avisando que ia levar o dinheiro de duas contas que tinham que ser pagas.

Aquele dia ele saiu do trabalho com muita pressa para aproveitar a tarde: puxar um ronco, ficar descansado, mas antes comprar umas quatro latinhas de cerveja para tomar vendo seu time jogar. Um farol antes de chegar na estação, Edivaldo saiu correndo para conseguir passar no sinal verde e foi parado por dois policiais na calçada seguinte, nisso ele perdeu mais ou menos seis minutos e dois trens. Foi liberado ouvindo que foi confundido com um suspeito de furto em um hipermercado próximo, não recebeu­­­ um pedido de desculpas no término do enquadro. Quando passa na catraca da estação, o segurança da CPTM comenta:

– Que merda hein…

– Os cara é racista, né? Fazer o quê?

– Racismo não existe, comigo não tem disso. É pra sua segurança.

– (silêncio)

Já no trem voltando para casa, Edivaldo presta atenção na molecada vendendo balas Fini, percebe que dentro do vagão tem um amigo de infância, o Telhada, que era mais velho e com quem perdeu contado depois que ele foi estudar na Barro Branco. Esse cara estava bem tenso, sentado de braços cruzados e olhando fixamente para as crianças que vendiam as guloseimas. Um dos meninos foi entregar o troco de uma venda a uma senhora, e de repente Telhada levanta gritando e já segurando o menino que nem um metro e meio tinha pela gola da camiseta suja e gasta.

 

Todo mundo abismado logo de cara dentro do vagão pediu para que o metido a Charles Bronson soltasse o moleque, Edivaldo levantou e peitou Telhada, pediu por favor, mas com raiva para que o (ex)amigo soltasse a criança. O guardinha usou argumento de vidente, afirmou que o ambulante ia roubar o celular da senhora, mas viu que as pessoas em volta não te davam razão, decidiu soltar o menor, mas deixou claro, que o ditado dos cem anos de perdão não funciona para ladrão que defende ladrão, mesmo sem ter nenhum em vista naquele momento, mas aquilo fez Edivaldo lembrar do seu passado.

 

Quando era menor de idade, o protagonista dessa história queria ter respeito entre seus colegas que não se respeitavam, gostava de aparentar que sabia tudo sobre bandidagem, que podia fazer e acontecer como um inimigo público tupiniquim, de tanto querer ser, acabou parecendo e esses colegas resolveram chamá-lo para um assalto de computadores novos da escola que estudava. Ele sequer podia sair de casa depois das 22h, mas aceitou o convite e disse para sua mãe que ia fazer trabalho na casa de um amigo, sem noção de consequência alguma, Edivaldo foi ficar de vigia na porta do colégio enquanto os ladrões reais faziam seu trabalho.

 

A única coisa que ele devia fazer era jogar uma pedra na janela da sala onde tinha as máquinas caso visse de longe uma viatura. Mas foi pego de surpresa, em um domingo, 0h45 na rua deserta em frente a sua escola, a polícia o enquadrou, perguntou o que ele estava fazendo aquele horário parado naquele lugar, gaguejando e tremendo em uma noite quente, ele disse que só estava ali parado mesmo.

 

Os policiais resolveram dar uma olhada dentro do colégio, pegaram todos que estavam lá dentro em flagrante e levaram para a delegacia. Edivaldo era o único de menor de idade, foi mandado para Fundação Casa, passou nove meses por lá, tendo como recompensa a decepção da sua mãe, o afastamento dos amigos de verdade, e a dúvida cruel se aqueles que foram presos estavam com raiva dele ou não.

Com a gaveta do passado fechada, Edivaldo chega em casa já entregando o dinheiro para a esposa, que te recebe com um sorriso, não tão grande como o de Manuela, sua filha que só queria saber das balas prometidas. Ele almoça e depois vai para o mercado comprar suas latas de Itaipava, no caminho encontra um amigo – também santista – que lhe convida para assistir o jogo na sua casa, onde ia ter cervejas e quitutes, o convite é aceito e ele em vez de subir de volta com cerveja pra casa, subiu com Yakult para a filha, nisso a sua esposa já te via como herói, e ele nem tava sabendo.

A soneca prometida pra si mesmo mais cedo foi tirada, já era noite e faltava apenas meia hora para começar o jogo tão esperado, aquela altura ele tinha certeza de que ia soltar o grito de campeão, o dia tinha sido estranho, mas tudo deu certo, até porque sua família estava bem, só faltava bola no fundo da rede a favor do seu time.

Edivaldo chega na casa do amigo 10 minutos antes de começar a partida, conversa e risada, cerveja e carne assada, tava sendo um bom fechamento para o dia. O jogo começa e o frio na barriga vem junto.

A campainha toca, ele próprio decide ir atender, sente um calafrio mas não dá atenção, quando ele abre e porta só vê um homem encapuzado na sua frente, que saca um treizoitão e lhe acerta tiros que ele nem raciocina ao ponto de conseguir contar. Ele cai no chão tentando entender o que aconteceu, tenta lembrar quem poderia fazer aquilo, será que tava sendo cobrado pelo roubo mal sucedido de anos atrás? Será que foi o guardinha que encontrou mais cedo no trem e te chamou de ladrão? Será que foi baleado por engano… No lugar onde morava aquilo era comum, podia ser qualquer coisa.

Nada importava, Edivaldo deu espaço para outros pensamentos, será que o Santos ia ser campeão? Será que a sua filha ia sentir falta dele? Ela ficou tão feliz quando ganhou as balas que tanto gostava… 

Escute a música Rapaz Comum.

Continue lendo “Rapaz Comum”

Disco dos Racionais é presente da Prefeitura de São Paulo para o Papa

O álbum “Sobrevivendo no Inferno” foi o presente escolhido pela prefeitura de São Paulo para dar ao Papa Francisco. Isso mesmo que você acabou de ler!

O prefeito Fernando Haddad participou de seminário no Vaticano nesta semana junto com outros prefeitos do estado. A ideia do presente foi repassada por um grupo de jovens da periferia ao coordenador de Políticas para Juventude, Cláudio Aparecido da Silva.

Haddad teve audiência com o Papa Francisco nesta terça-feira (21), mas não conseguiu entregar o disco. O secretário de Relações Internacionais da Prefeitura, Vicente Travas, que segue em seminário em Roma, deve deixar o LP, autografado pelos integrantes do grupo, aos cuidados do Papa por meio do chanceler do Sacro Colégio. Ainda há uma chance!

Que momento que o rap esta vivendo hein meus caros leitores!

Fonte : http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/07/disco-dos-racionais-e-presente-da-prefeitura-de-sao-paulo-para-o-papa.html

Sobrevivendo_no_Inferno